Ailton Krenak, líder indígena e filósofo, escreveu “Ideias para adiar o fim do mundo”, em 2019. Indo ao encontro de suas ideias é que escrevo esse ensaio e o que se segue. Para pensarmos sobre o mal do século: a depressão, e nas possibilidades de adiarmos o fim, da vida e do eu.
Krenak escreve:
“Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim” (Krenak, 2019, p. 13).
Em outro texto, falei sobre encontrar com o novo. A vida que segue depois da pandemia e busca se reconstruir do jeito que é possível. Mas há muito tempo, existe algo de muito errado com o modo que estamos vivendo.
Os números de pessoas tornando-se pacientes aumentam. A depressão é mesmo o mal do século. Mas o que nos leva a chegar nesse ponto? O que nos leva ao adoecimento, não só psíquico, mas da vida? E por fim, a pergunta que deveríamos ter nos feito antes: como fazemos para adiar o fim do eu?
A relação da depressão com o ter e o ser
Não há vida plena, ou de conhecimento pleno da vida, penso eu. Mas é o caminho da busca e de todas as possibilidades de ser e estar no mundo, que produz um indivíduo-vivo.
Quando utilizo aqui o termo indivíduo-vivo falo em contraponto aos tantos mortos-vivos que existem no mundo contemporâneo. Somos eu, você, aqueles que não encontram espaço e tempo na vida para vivê-la de fato, para estar próximo e conectar-se com as coisas essenciais e intrínsecas ao ser. Coisas como, caminhar no parque, praticar exercício, ler, criar algo que não esteja relacionado com a produção em massa ou comercial, buscar pelo autoconhecimento…
Acredito que tudo o que nos afasta deste lugar e da criação de vidas potentes, nos guia até a morte. Morte que é sentida ainda quando em vida. Morte de poder-ser, morte de criação, morte da diferença e de possibilidade de viver.
Era sobre isso que Belchior[1] falava, quando cantou “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”.
É assim que entendo a depressão, como uma morte ainda em vida. Como uma morte de aspectos que nos aproximam de viver a partir de uma outra perspectiva, que não valorizam só o tempo que se gasta trabalhando e se preocupando com as coisas triviais.
O objetivo da vida não deveria ser produzir e trabalhar para conseguir o mínimo, o básico, o sustento. Como não adoecer assim? É compreensível que tanta gente esteja sendo diagnosticada com depressão.
Pesaroso pensar que existem mais espaços que nos fazem morrer, que nos conduzem a depressão, do que aqueles que nos conduzem a vida. O problema é que nossa existência está estruturalmente condicionada a render, fabricar, manufaturar, e tantos outros sinônimos pertencentes ao capitalismo.
Para entender melhor esse assunto complexo, que está totalmente relacionado a um diagnóstico massivo de pessoas em depressão, precisamos compreender que, atualmente, a vida está subordinada ao ter. Ou seja, dispor de bens materiais e aquisições que demonstrem nosso poder de compra, associa-se a uma “boa vida”, uma vida estável e de qualidade.
Nossa imagem está associada com aquilo que compramos, vestimos, usamos. Parece que quanto mais temos, mais somos. O contrário também acontece. Existe algo atrelado a esse pensamento que nos levar a entender que existem vidas que valem menos, por terem menos. Com isso, nossa vida é organizada entorno de atividades que estão, de algum modo ou outro, vinculados ao dinheiro. E, exatamente por isso, é bem comum sentirmos culpa quando estamos desconectados do trabalho e da rotina de obrigações diárias.
Já falamos sobre nossa urgência em encontrar um sentido para a vida, “fazer a vida dar certo”. Como se algo de muito precioso precisasse acontecer para que nossa existência pudesse enfim ter significado. Vivemos em busca do que vem depois, sempre. Isso não tem nada a ver com termos sonhos materiais e pensamos no futuro, o que obviamente é importante. Mas sim, do nosso imediatismo depressivo que nos distancia da vida que acontece agora, tornando difícil a tarefa de simplesmente relaxar e aproveitar o dia.
Sei que ao dizer isso me distancio do que, usualmente, se considera uma escrita que fala da depressão. Contudo, não consideramos a magnitude da decorrência que os aspectos socioeconômicos produzem na nossa vida. A depressão está totalmente correlacionada a isso.
O modo como vivemos e como encaramos a vida é perpassado por diversas questões sociais, políticas, econômicas. Ou seja, a depressão, assim como, o tratamento da depressão, não pode estar focado e vinculado apenas no indivíduo. Se estamos adoecendo em massa, é um sinal de que precisamos encontrar outros modos de compreender a depressão e assimilá-la.
Então, como adiar o fim do eu, como lidarmos com uma sociedade que produz dia-a-dia mais gente adoecida?
Krenak, nos presenteia mais uma vez com a seguinte fala[2]: “A gente tem que curtir a vida. […] Essa ideia moderna, […] de quando o homem descobriu que ele poderia se distinguir de todos os outros seres e aplicar algum sentido a vida, é esse sentido utilitário que eu ponho em questão”.
Não podemos abandonar nossos empregos, o sistema, as questões materiais. Mas podemos compreender a importância de nos conectarmos a outros aspectos da vida, que hoje são considerados sem utilidade. Sabe aquela conversinha sobre “quando foi a última vez que você fez algo pela primeira vez?”, isso nos vale aqui.
A depressão está demasiadamente ligada ao sentimento de não enxergar sentido na vida, porque acreditamos que a vida precisa sempre do amanhã, do material, do sentido, do objetivo. Poderia ser mais simples se nos permitíssemos, se nos arriscássemos, se fizéssemos mais coisas pela primeira vez.
Sair do piloto automático é importante. Tão importante quanto é a compreensão de que estamos nos apegando cada vez mais aos aspectos da propriedade material, ao invés de olharmos para nós mesmos, apreciar o que somos e onde estamos.
A depressão é o mal do século, mas nossa sociedade é quem a produz, dia após dia.
Referência: KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.