Se chegamos ao ponto, em que se faz necessário, dizer da importância de respeitar o espaço de cada um dentro de um relacionamento, isso significa que, o modo como concebemos a ideia de relação, não pressupõe que um casal possa viver uma vida individual.
Tratamos já aqui, em outro texto, sobre a necessidade de cultivar uma vida própria, que não depende do parceiro ou parceira com os quais dividimos a vida.
Dividir a vida, inclusive, é frase que faz pensar. Pois dividir, é palavra que reflete a cisão entre a vida individual e a vida compartilhada com o outro.
Você percebe que o termo dividir a vida, suscita em nós a noção de que, em uma relação, é inevitável que mantenhamos nossa vida individual inteira? Uma vida sem corte, sem fração, sem dividir. Parece até egoísta escrever isso. Contudo, é mais egoísta e danoso, pressupor que é preciso dividir-se para compor com o outro.
E não é exatamente o que fazemos quando encontramos um par?
Penso em minhas próprias experiencias de dividir a vida, e também, nas outras equações que acompanhei de perto.
Em nossa sociedade, fomos introduzidos a um tipo de relação, que implementou em nossa subjetividade, a concepção de que para sermos adultos temos que conquistar determinadas coisas.
Não existe apenas a pressão de que sejamos bem-sucedidos profissionalmente. Isso também acontece no aspecto amoroso. Existem cobranças chegando de todos os lados. “Quando você vai ter filhos?”, “está na idade de casar”. Familiares, amigos, propaganda televisiva, música… Tudo isso nos coloca em situação de atenção: precisamos encontrar alguém.
Mas, será que precisamos mesmo?
Sem nem ao menos pensar sobre, vamos, pouco a pouco, sendo conduzidos a uma vida que procura dividir. O problema disso é que, na preocupação de encontrar e dividir a vida com alguém, esquecemos de somar com quem mais importa: o Eu.
Da importância de respeitar seu próprio espaço
Quando penso na ideia de espaço, sou remetida a ideia de algo vazio. como se fosse algo esvaziado de sentido. E nós não aprendemos a lidar com o vazio. Isso diz muito sobre mim, sobre você e sobre os outros.
Minha avó paterna, há anos atrás, me presentou com a roupa que vestiu em seu casamento. Nunca disse a ela sobre meu desejo de casar na igreja, até porque nunca o tive. Ainda assim, ela acreditou que aquele seria um bom presente. E foi.
Percebi que, quando mulheres, da idade dela, vestiam-se de branco e iam para a igreja fazer votos de amor, esse era um dos momentos mais importantes de suas vidas. O momento que marcava e instituía legalmente e religiosamente a divisão da vida.
Você já viu aquele topo de bolo de casamento, em que a noiva puxa o noivo pela gravata? Essa é uma bela representação para nos fazer pensar sobre a vida que se divide. A figura faz alusão a ideia de que o homem só casa porque é coagido pela mulher.
Escrevo isso porque, claramente, existe uma cobrança e um peso diferente, entre homens e mulheres, quando se trata de relacionamento. Se o homem, no topo do bolo do seu casamento, insinua querer fugir, a mulher é representada como quem faz do casamento a grande ocupação de sua vida.
E isso não é problema, desde que seja uma escolha consciente da própria mulher. Dificilmente é.
Complexa a tarefa de escrever sobre o espaço que é preciso dar ao outro em uma relação, quando, precedente à comunhão, o homem teve seu espaço respeitado enquanto indivíduo.
Enquanto que nós, mulheres, temos que ouvir aquela tia chata nos dizendo que ficaremos sozinhas se não encontrarmos alguém logo para dividir. Como se nossa vida só fosse ganhar sentido quando isso ocorrer.
Muito mais importante do que aprender a dividir, é aprender a respeitar nosso próprio espaço. Respeitar o espaço de nossa vida. Confundimos monogamia com impossibilidade de existência individual e assim, construímos relações nas quais apagamos a nós mesmos, para ser com o outro.
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Quanto a obviedade do assunto, tenho apreço por um dizer de Fernando Pessoa:
“A liberdade é a possibilidade do isolamento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo”.
E o quanto de nós nascemos. Conduzidos a ser com o outro, antes de aprendermos a ser só com a gente.
O amor é o que todos nós buscamos. Do jeito que for e com quem for. Homem com homem. Mulher com mulher. Mulheres e homens. Dentro de relações monogâmicas ou não. Todos queremos ser amados e todos queremos compartilhar a vida com alguém.
Contudo, isso nunca deveria ser acompanhado do entendimento de que estar em um relacionamento, pressupõe abandonar quem somos sozinhos.
Já vi muita gente, mudando muita coisa, para se adaptar no gosto do outro. Gente querendo caber em lugar que não faz bem, só para caber com alguém. Já vi gente que aguentou calado os abusos psicológicos que sofria, só para não precisar estar sozinho. Relações e pessoas fadadas a deterioração.
Tudo isso porque, essas pessoas não aprenderam sobre a importância de respeitarem seu próprio espaço. Essas pessoas somos nós, que não fomos ensinados sobre cultivar uma vida individual, independente de com quem formos compor depois.
Coisas simples como, descobrir o que faz feliz, o que gosta de ouvir, comer, o que acalma. Fazer e manter relações de amizade. Sair e se divertir apenas com os amigos. Sair e se divertir apenas consigo mesmo.
São coisas como essas que produzem individualidade, autoconhecimento e que não permitem que acabamos junto dos relacionamentos que acabam. Pois ainda temos a nós, os nossos gostos, as coisas e as pessoas que vieram antes do outro.
Dizendo mais ainda sobre o óbvio… Se, quando a pessoa com quem você compartilha a vida, quer aproveitar a vida dela própria sozinha, e isso te causa angustia ou incômodo, é porque você não entendeu ainda a importância de sua própria individualidade.
Priorizar a si, não deixar a vida que se tinha para trás só porque agora divide-se a vida com alguém, fazer coisas que independem dos nossos parceiros, não nos torna egoístas. Não significa que se ame menos. É apenas o sinal de estabilidade psicológica dentro de uma relação de dois.
Dois que não se dividem, mas se somam. Então, que possamos parar de dividir a vida. Que relacionamentos possam ser composição de vidas, nunca a cisão da vida individual que se tem.
Por fim, deixo o trecho de Holy, música de Jamila Woods[1] que nos ensina:
“Eu não estou sozinho,
Eu sou sozinho.
E eu sou sagrado.
Os dias ruins podem vir
O amante pode partir
[…]
Você é seu templo
Você é tudo o que tem”