Pandemia. Termo que não tem nada de novo, principalmente agora, anos depois de ouvirmos tanto a repetição da palavra.
Nos últimos dias do ano de 2019, a Organização Mundial de Saúde[1] (OMS) era comunicada sobre os primeiros casos de um vírus do qual ainda pouco se sabia sobre. Não muito tempo depois, em 11 de março de 2020, a OMS decretava a pandemia do novo coronavírus.
Parece ser futuro de onde escrevo hoje. Pessoas tornaram-se números, compondo 32,8 milhões de infectados, cerca de 673 mil mortes no Brasil. No mundo, o total de sujeitos com covid-19 chega a mais de 550 milhões. Dentre eles, amigos, pais, irmãos, mães, tios, sobrinhas, avôs e avós… Não há quem não foi afetado pela pandemia, seja pela perda ou seja pelos efeitos posteriores que deixou em nossas vidas.
Depois de quase dois anos trancafiados em casa, a percepção da vida e do modo como vivemos parece abalada. Não concordo com quem nomeia o momento atual de “novo normal”, ao mesmo tempo em que nada parece igual ao que já foi.
Mesmo quando a rotina volta a operar nos conformes do dito horário comercial, quando a vida volta acontecer presencialmente, um desconforto misturado de desajuste social ganha expressão maior no encontro com a vida e com os outros.
O tempo não parece mais o mesmo de antes.
Falamos muito sobre as dificuldades de voltar, sem nem sabermos ao certo para o que estamos voltando e se é possível voltar, seja voltar para algo, para algum lugar ou para alguém…
O início: relembrando os primeiros tempos da pandemia
Você lembra o curso que sua vida seguia antes da pandemia? O que fazia, como organizava o dia e a noite, com quem saía? Lembra como era pegar o ônibus, ir ao bar, fazer compras no mercado?
Noto que são nas coisas mais banais e cotidianas que a vida parece ter se transformado.
Ainda me sinto confusa com a retomada integral das presencialidades. Com aquela coisa de não saber se continuamos os cumprimentos com precaução, se é possível abraçar ou não. Existe até um sentimento de culpa atrelado a estar no meio de muita gente, quando acontece.
Mas é na organização do tempo que a vida parece ter mudado mais.
Você já parou para pensar sobre como organizamos nosso dia-a-dia de acordo com o horário do comércio? O horário de acordar, almoçar, jantar. Até o horário de lazer fica restrito, por vezes, ao horário comercial – ou o pós, no caso de quem trabalha até às 18h, de segunda a sexta-feira.
A organização da vida em torno do horário de trabalho é uma coisa tão comum para nós brasileiros, que quando nos deparamos com a pandemia, e a necessidade de nos recolhermos, o movimento de viver fora desse padrão se tornou tarefa complicada.
E viver fora de um modelo de vida totalmente organizado, de acordo com um sistema, pode ser muito mais complexo do que parece.
Nos primeiros dias em casa, não era o fato de não poder sair dela que mais afligia – além, é claro, do medo iminente de ser e ter familiares contagiados com o vírus –, mas de como ordenar a vida, e continuá-la, no meio do caos que se instaurava.
Já falamos aqui sobre o vazio existencial, fenômeno pelo qual nossa existência é perpassada e que é iminente ao estado de estar vivo. Contudo, a pandemia agregou sentidos novos a esse acontecimento.
Foram vários os momentos em que me vi em meio a uma crise. Assim como, ouvi, vi e falei muito sobre o assunto com colegas e familiares que viviam o mesmo dilema.
Ver, ouvir, falar, ler e saber sobre quem morria e o quanto morriam pareceu nos colocar em posição de reflexão interna obrigatória. Aquele encontro inadiável com as coisas que vivem apenas na cabeça e que já não podiam mais.
Não podiam mais porque já não vivíamos uma vida em que se podia adiar.
Parece ser só de encontro a morte que a vida ganha expressão, valoração… E os números de vidas morrendo não paravam de aumentar. Ainda não pararam.
A hora era chegada. E dos encontros que não podemos adiar, parece ter sido o que remete a nós mesmos o que por mais tempo se postergou.
As velhas questões, que só tinham vez na agenda dos filósofos de plantão, emergem e nos fazem sentar frente a frente com nosso mundo interno. Voltamos a perguntar, a refletir, a encontrar espaço na vida para a vida em si.
Se é que é possível dizer que voltamos.
Parece ser singular o momento em que vivemos, justamente porque fazemos dele espaço para pensar no que foi antes, no que é agora e nas possibilidades do que será. É da vida que falo, sim. Pois, mesmo hoje, ainda há quem morre pelo vírus. Ainda há quem se recupera, de perdas físicas e materiais.
Mesmo quando parecemos estar seguros – depois de finalmente imunizados –, ainda há quem sofre com os impactos que o vírus espalhou. São inúmeras decorrências e efeitos que perduram em todos nós… O motivo disso sabe qual é?
É que não há como voltar. Não há para o quê voltar. Não depois de ter encontrado com nossas angústias, de termos nos percebido, finalmente. É preciso assimilar o que passou e seguir, mesmo sem saber dos motivos e dos porquês.
Tudo o que nos rodeia, nosso sistema político e econômico, o horário da vida que deve ser submetido ao comércio, tudo, absolutamente tudo parece urgente. Menos nossa existência em sua singularidade.
Em nossas vidas, no plural, não parece haver espaço para reflexões, para questões, para encontros com nós mesmos.
Vivemos de acordo, e com acordos, que foram deliberados antes de nossa chegada aqui. Exatamente por isso foi difícil estarmos sós. Ter tempo para pensar, sobre o que não é mais possível permitir que façam com a gente, é movimento que coloca em risco esses acordos. Acordos sociais que não privilegiam e não respeitam a vida única de cada indivíduo e que, portanto, nos adoecem.
Ao mesmo tempo, o novo normal nos conduz a um reencontro com uma vida de outrora. Somos passageiros de ônibus, frequentadores de barzinho, é permitido novamente aglomerar. E nós sempre fomos de aglomero. Mas não é possível voltar. Uma segunda epidemia vem aí, essa, por sua vez, de adoecimento psíquico!
Continua…
[1]https://www.paho.org/pt/covid19/historico-da-pandemia-covid-19