Texto escrito em colaboração com a psicóloga Kelly Gomes – CRP 12/14830. Especialista em avaliação psicológica. Formanda em análise psicodramática e psicologia e intervenções on-line.
“Não precisamos do amor romântico em nossas vidas”, é o título de uma reportagem da BBC, que dá início a uma série de questionamentos bem pessoais e particulares, que nos faz refletir. A matéria, de Julia Braun, logo no ínicio já entrega um apontamento central para iniciarmos tal discussão:
“Nas sociedades ocidentais, o amor costuma ser apresentado por meio do clichê de duas metades que se encontram para se sentirem completas”.
É preciso então voltar ao início…
Nossa identidade e tudo aquilo que nos define enquanto nós mesmos, faz parte de uma construção social, que é perpassada pela família, por nossas primeiras experiências, pelo contato com a cultura, etc. Contudo, algo importante a se lembrar é que, tudo isso – e com tudo isso queremos dizer: as coisas, pessoas, saberes, escritos, territórios, experiências e, inclusive, as leis que nos são impostas – são construções sociais inteiramente conectadas ao ocidente.
Existe todo um modo de pensar, de ensinar os mais novos, de ler e viver o mundo que é constituído pela cultura ocidental.
A antropóloga Anna Machin, citada na reportagem de Braun, aponta que até o início do século 18 as relações, que hoje chamamos de românticas, se davam apenas com o intuito de reprodução da espécie.
E é nesse mesmo século que um movimento artístico e cultural toma grande proporção na produção de músicas, pinturas, literatura e até mesmo na arquitetura do ocidente: o Romantismo.
O nome, por si só, já nos revela muita coisa. O Romantismo, por estrutura, tem uma base sentimentalista, o que passa a ser fomentado como prática pelo público.
Isso reverbera ainda nos dias de hoje. Sabe como? Através do contato com a cultura, é claro.
Lembra das histórias infantis de princesas, que são salvas pelo príncipe encantado e que dão sentido à vida quando encontram esse, que é então sua alma gêmea? Não há como não mencionar as diversas produções hollywoodianas, com suas histórias de amor adolescente – desde aqueles bem clássicos como Lagoa Azul, chegando aos atuais e inebriantes, tal qual o muito celebrado A culpa é das estrelas.
As produções culturais nos fazem não só desejar o amor romântico, como também, introjetam noções como a de alma gêmea, amor eterno, cara-metade. Construindo assim a idealização e a necessidade de ser e ter um par.
Isso faz com que a ideia do amor romântico ganhe grandes proporções nas nossas vidas, tornando-se, por vezes, algo que nos parece intrínseco ao simples ato de existir. Ou ainda, como se a vida só fizesse sentido ao encontrar um grande amor.
Numa canção de Vanessa da Mata, encontramos um trecho que parece resumir o que entendemos por amor romântico. A letra diz:
“Se você quiser eu vou te dar um amor
Desses de cinema
Não vai te faltar carinho
Plano ou assunto ao longo do dia
Se você quiser eu largo tudo
Vou pro mundo com você meu bem
Nessa nossa estrada só terá belas praias e cachoeiras”
Na arte, é claro, extrapolam-se limites e realidades. Quem já amou sabe, nenhum percurso relacional é feito só de “belas praias e cachoeiras”. Mas nossos desejos e idealizações não comportam as frustrações e paisagens que não são tão bonitas assim.
É chegada a hora do fim do amor romântico?
O mesmo amor que nos envolve, nos tira o fôlego, nos dá ânimo e prazer, pode frustrar, decepcionar e machucar.
O amor doce, bonito, intenso, aquele amor de cinema, do tipo que pode até passar por maus bocados, mas que supõe-se que superará tudo, é algo que não cabe fora de tela.
É bonito a imagem mental que se faz do amor que está disposto a tudo. Disposto a atravessar mares e oceanos para permanecer par, de mãos dadas, eternamente. Mas como isso se desenrola na vida cotidiana? Será mesmo que é possível viver um amor assim?
Nós duas também gostamos de fantasiar e flertar com o romantismo, mas nossa conclusão é de que uma relação vai muito além do amor.
Para que exista uma relação saudável, outros aspectos precisam ser considerados, como, por exemplo, o respeito, a imposição de limites, a garantia de que, as pessoas envolvidas na relação possam viver coisas que preservem sua singularidade. E que isso não seja visto como uma ameaça ao amor, mas sim, enquanto fortalecimento do sentimento existente entre os envolvidos.
Para estar em uma relação, muitas coisas precisam ser pesadas na balança. É necessário alinhar expectativas, planos… Tal como uma negociação. Porque, apesar de ser bonito pensar o amor pelo viés do romanticismo, sabemos que o amor em si não basta.
Talvez a gente coloque tudo na conta do amor para nos eximirmos de certas responsabilidades.
O amor se trata de insistir, mas também de saber deixar ir. O amor se trata de proteger, mas também dar liberdade. Nos solicita diálogo e, em outras vezes, silêncio. Exige investimento e manutenção diária.
Não é porque lá no início existiu amor que ele simplesmente continuará existindo. Amor e desejo podem seguir caminhos diferentes.
Há de se refletir que, quando entramos em um relacionamento, nos dispomos a uma relação com o não dito, com a necessidade do diálogo, da compreensão, da troca, da presença, da falta, do conflito.
O que os filmes românticos não nos contam
O filósofo Zygmunt Bauman, escreveu que: “Em todo amor há pelo menos dois seres, cada qual a grande incógnita na equação do outro.”
Se fantasiamos uma relação na qual o amor romântico é estruturante, há sempre que se falar sobre a noção de idealização. Essa que se constrói com base em nossas mais íntimas experiências, desejos e devaneios. E que, obviamente, é diferente de sujeito para sujeito.
Se para você, relacionar-se com alguém está acompanhado da ideia do “felizes para sempre”, é preciso questionar-se: como e o quanto isso te afetará se houver um fim? Mesmo nos casos de relações que perduram por anos e anos, há algo que sempre encontra final. Seja o fim do desejo, da paixão, ou da disposição… Nada permanece igual ou imutável e isso não seria diferente com o amor.
Relacionar-se com alguém, talvez seja mais sobre saber o que não agrada, compreender as limitações do(a) parceiro(a) ante nossas expectativas, do que só enxergar aquilo que faz o olho brilhar.
Por isso mesmo é que o processo de romper com a idealização, não somente do amor romântico, mas do outro, é tão necessário para viver uma relação saudável. Abandonando assim aquela velha concepção de que há um outro que, supostamente, existe para me completar e fazer de mim uma “pessoa inteira”.
Para isso, talvez seja importante compreender, primeiramente, que o amor romântico é uma invenção ocidental. Daquelas coisas que deveriam ter permanecido apenas na literatura e nas obras de arte. E assim, por fim, compreender que, relações saudáveis são constituídas de muitas coisas que vão para além do amor. E isso não deve ser impeditivo para amar ninguém.
“O amor é uma hipoteca baseada num futuro incerto e inescrutável”. Zygmunt Bauman