Texto escrito em colaboração com a psicóloga, em percurso psicanalítico, Caroline Chiodelli CRP 12/15776
Memória (de Carlos Drummond de Andrade. “Claro Enigma”, 1991)
“Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão”.
Família. Uma palavra que carrega diferentes significados para cada sujeito, mesmo que estes sujeitos façam parte de uma mesma família. Para começo de conversa, uma das descrições de “família” no dicionário é: grupo de pessoas que compartilham os mesmos antepassados; estirpe, linhagem, geração.
Sabemos que a origem da família está intrinsecamente ligada ao processo civilizatório, onde surgiu a necessidade do ser humano estabelecer relações afetivas e criar laços. Algumas perguntas podem-se fazer a partir daí é: no seio familiar, o que mais se cria além de laços? E quais efeitos estes laços produzem para cada sujeito que a compõe?
Sabemos que, na contemporaneidade, a dinâmica familiar vem ganhando múltiplos arranjos para além do modelo tradicional: famílias homoafetivas, multiparentais, monoparentais, recompostas e famílias inter-raciais e interculturais.
A verdade, é que cada sujeito têm dado contorno àquilo que entende e deseja por família. E apesar das duras críticas dos séculos XIX e XX direcionadas a família, a escuta, na clínica psicanalítica, nos mostra que ela continua viva e pulsante, produzindo efeitos.
Isso se manifesta de diferentes maneiras…
Há quem deseja estar perto dos familiares, apreciando e admirando, e há também quem se angustie profundamente a ponto de atravessar um continente e fazer uma nova morada, por exemplo.
Porém, sabemos que os enlaces que a família compõe, transcendem o espaço geográfico, tempo e gerações. E é dessa cena que se trata para um sujeito: o enlaçamento entre aquelas subjetividades e a inscrição simbólica que o convoca a se constituir sujeito. Ou seja, o encontro entre aquilo que é de ordem individual e aquilo que é de ordem familiar. A partir desses entrecruzamentos que nos tornamos um eu.
Ao nascermos, somos lançados em um mundo repleto de histórias, acontecimentos, significados. A existência de um mundo antecede a existência de um bebê. Recebemos um nome e um sobrenome e, curiosamente, somos identificados a partir desta origem. Muitos de nós já fomos fisgados pelo entusiasmo de saber de onde viemos, buscando atrelar histórias passadas – de cinco décadas atrás, por exemplo – com a nossa própria.
O tempo cronológico interrompe muitas coisas, o expediente de trabalho, o fim de um filme, a validade de um produto. Contudo, as marcas subjetivas criadas pela passagem do tempo, não operam a partir do relógio. Aquilo que faz marcar a vida, não morre quando a morte acontece, pois continua ecoando na sua atemporalidade.
Ao falarmos de família, também estamos falando de ecos. Alguns gritantes, outros mais silenciosos… e, principalmente, alguns advindos de histórias e pessoas que nem mesmo o tempo cronológico teve a maestria de nos apresentar.
Conflitos familiares: daquilo que fica em nós
O entrelaçamento de gerações é comumente composto de afetos, desejos inconscientes, (re)vivências de conflitos infantis, narcisismos dos pais, e, especialmente, transferência de histórias familiares originárias de outras gerações que atravessam o tempo e o encontro de gerações.
Afinal, os nossos pais, são também filhos. Os nossos avós, são também filhos e pais. Ter este olhar sob aqueles que exercem funções e ocupam o lugar de amor e/ou ódio em nossas vidas, aponta para a direção principal deste escrito: uma família, indiferente da década/século, está sempre povoada por histórias que ecoam.
O modo como esses “ecos” ressoam em nós, são diversos. Justamente por isso, não é incomum ouvir sobre como parecemos, em questão de traços psíquicos e posicionamentos, algum familiar. Os anos vividos, lado a lado, com nossos pais e mães, deixam resquícios na constituição de nossa identidade, produzindo uma certa semelhança de identificação.
Na clínica, este espaço destinado à escuta e acolhimento, estes ecos se fazem escutados e é por isto que muitas vezes, se impõe uma busca mais primitiva de um sintoma, pois este pode estar relacionado a conteúdos herdados que não foram simbolizados.
Pensar sobre a herança, para além daquela que é material – casa, dinheiro, terras – se faz extremamente necessário quando estamos falando de constituição do sujeito, na articulação entre as dimensões intrapsíquica e intersubjetivas.
Que heranças herdamos de nossos pais? Avós, bisavós e por aí em diante. Nesse sentido, é importante atentar para quais cenas e situações se repetem, ano após ano, de mãe para filho, por exemplo. Existem “queixas” familiares que são recorrentes e transgeracionais. Observar isso e compreender quais repetições mantém determinadas queixas, é um trabalho árduo, mas necessário.
Seria simplório demais termos uma resposta exata para esta pergunta, mas seria ilusório demais pensarmos que nada se herda. Talvez, então, a questão seja outra, a de reconhecer a existência de uma história que antecede todo sujeito.
Metaforicamente falando, ao nascermos, é como se recebêssemos, junto a experiência traumática de nascer, um tecido para vestir. E de alguma forma, somos convocados a vestir e se apropriar desse tecido.
Porém, um tecido é sempre formado por tramas de fios que já estão dispostos de determinadas maneiras. Talvez reconhecer, escutar os ecos e, principalmente, poder falar deles, seja justamente abrir aos poucos, estas tramas que às vezes criam nós, embaraçam novas linhas. E a partir daí, poder fazer novas costuras e arranjos.
Das possibilidades de se reinventar e se rearranjar, é na clínica psicoterapêutica e na análise, que se faz possível assimilar o que é meu, o que é do outro, e de que forma esses entrecruzamentos produzem sofrimento e estagnamento.
Existe um termo denominado upcycling. Na moda, o upcycling surge como a reutilização de uma roupa, que já não cabe do modo como foi pensada. São feitos novos arranjos e dada uma nova função àquilo que antes compunha uma indumentária. Ao encontro desse termo é que se propõe pensar as possibilidades de aplicação do upcylcing, naquilo que é de ordem subjetiva, que é carregada tal como uma herança, mas que já não cabe em nós.