4 – Ideias para adiar o fim do eu: sobre a vida civilizada, exaustão e frustração (parte final)

exaustao psicologia

Continuando… Falaremos agora sobre como a vida que vivemos tem nos conduzido a frustração massiva e a uma exaustão mental que adoece.

Iniciei essa coletânea de ensaios com o objetivo de apresentar um outro modo de encarar a epidemia de saúde mental, que parecemos estar vivendo.

Veja, muito do que os pensadores que apresentei aqui descrevem, em relação aos comportamentos de sociedades anteriores a nossa, nos ajudam a pensar sobre como foram construídas, a partir da ideia de cuidado, as categorias e classificações sociais.


Códigos sociais + vida padrão = frustração e exaustão

Foi a partir disso que se estabeleceu o padrão do que pode ser classificado como normal e anormal.

Deste modo, para ser considerado civilizado, leia-se membro de uma comunidade social, o sujeito precisa corporificar e introjetar os códigos sociais em si. É como se fôssemos habituados a certas ideias, do que é normal e não é, que já não sabemos mais como fugir disso para viver uma vida saudável.

Introjetamos assim, comportamentos, ideias sobre o que é ser bem-sucedido, a importância de seguir as regras e convenções sociais, como por exemplo: meninos usam azul e meninas cor de rosa, depois de namorar deve-se casar, morar junto e ter filhos com o/a parceiro/a.


vida frustracao psicologia


E todas essas coisas que nos colocam em espiral entorno de vidas que nos tornam frustrados. Seja por nos afastar de um modo de vida que é o modo como gostaríamos de viver, seja por nos aproximar de convenções como é com o casamento, mesmo sabendo que não cabemos nesse lugar.

Somos cobrados o tempo todo para sermos “normais”. Para, fazermos parte desse clube que é o sujeito-padrão, que tem toda sua vida programada desde que nasce. Sentimos culpa, porque ao colocar nossas vidas do lado de outras vidas, sempre terá alguém mais fiel e focado a participar desse clube. A frustração e a exaustão mental são efeitos desse lugar em que nos colocamos, de precisar de uma vida que esteja nos conformes da vida-padrão. E se, com muita coragem, fugimos desse ideal de vida, somos tachados como loucos, como quem está “perdido na vida”.

Já escutei muita gente falando sobre estar perdido na vida. Até hoje não consigo compreender como não estaríamos. Apenas, é claro, se seguíssemos os conformes, regras e condutas sociais prescritas naquele livro de Erasmo, escrito em 1500.

É importante tratarmos do processo civilizador e de tudo que provém daí, como, as regras e códigos sociais. Se vivemos frustrados, trabalhando mais do que podemos, fazendo coisas que não nos libertam ou não nos tornam felizes, é justamente porque o processo de nos tornar civilizados deu certo. E deu certo, a tal ponto que, essa progressão, nos conduziu a um afastamento do que nos torna vivos, do que nos dá prazer.

O que quero dizer é que, ao passo que o processo civilizador avança, os alvos de controle avançam com ele também. O que havia iniciado com a preocupação de como se portar a mesa, como olhar para os outros, como vestir-se, até que chegamos ao órgão central: a civilização cerebral. Ditando o que devemos pensar, como devemos conduzir a vida, da obrigatoriedade de sair da escola já sabendo com o que iremos trabalhar, etc.

Quando falamos hoje de uma epidemia de saúde mental, precisamos ter isso em mente. Temos sido conduzidos a um modo de vida que produz doença, sofrimento, ansiedade. Que frustra e que nos torna bitolados. É por isso que tratar o sofrimento, pelo âmbito individual, pela cerebralização das dores da vida, não é o ideal, pois isso nos induz a acreditar na solitude do ser no mundo, de que nós é que somos problemáticos, quando na verdade é o modo de viver…


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Como pontua Elias (1995, p. 27)


“O que se veicula através dela é a autoconsciência de pessoas que foram obrigadas a adotar um grau elevadíssimo de refreamento, controle afetivo, renúncia e transformação dos instintos, e que estão acostumadas a relegar grande número de funções, expressões instintivas e desejos a enclaves privativos de sigilo, afastados do olhar do “mundo externo”, ou até aos porões de seu psiquismo, ao semiconsciente ou inconsciente. Numa palavra, esse tipo de autoconsciência corresponde à estrutura psicológica estabelecida em certos estágios de um processo civilizador. […] É esse conflito no interior do indivíduo, essa “privatização” ou exclusão de certas esferas de vida da interação social, e a associação delas com o medo socialmente instilado sob a forma de vergonha e embaraço, por exemplo, que levam o indivíduo a achar que, “dentro” de si, ele é algo que existe inteiramente só, sem relacionamento com os outros, e que só “depois” se relaciona com os outros “do lado de fora”.”


Quantos são os que conhecemos que estão à beira do esgotamento? Quantos de nós vivemos frustrados e aceitamos continuar vivendo assim, pois parece ser a única saída? Quantas vezes nos sentimos exaustos mentalmente, como se fosse impossível continuar? Ninguém está sozinho ao se sentir assim. Muitos de nós vivemos e sentimos isso todos os dias.

Todas as regras sociais de convivência, o processo de civilização que nos torna aptos a viver em sociedade, tudo isso, só nos conduz a uma vida que está mais perto da morte. Morte de poder-ser, de viver uma vida que foge dos padrões, uma vida criativa, uma vida que goza pelas experiências que se vive e não as que se paga, compra e consome.

É por isso que digo que, as comparações não nos ajudam. Essa ideia de “dar certo na vida”, não nos ajuda em nada.

A categorização da sociedade em indivíduos normais e anormais, saudáveis e doentes, vidas que deram certo e vidas que não deram certo, servem somente aos ideais da sociedade do desempenho, pois é crucial a esse sistema que nos coloquemos em comparação. Já que assim, aquele sentimento de frustração recai apenas sobre nós mesmos. Como se fossemos unicamente culpados pelo modo de vida que vivemos, que conduz ao fracasso, a exaustão, ao adoecimento psíquico… Mesmo sabendo agora que temos sido ensinados desde pequenos que é assim que se vive, através de regras sociais.

A confrontação e comparação com o outro impulsiona, de maneira quase que coercitiva, o sujeito a arquitetar um projeto do “eu-melhorado”. Por isso, também, existem tantos “coachs” por aí. Porque consumimos e acreditamos que nós é que vivemos errado…

Para finalizar, trago novamente Krenak, que nos ajuda a pensar em estratégias para adiar os fins, do eu, da vida e que nos impulsiona a procurar outros modos de viver:


“Talvez estejamos muito condicionados a uma ideia de ser humano e a um tipo de existência. Se a gente desestabilizar esse padrão, talvez a nossa mente sofra uma espécie de ruptura, como se caíssemos num abismo. Quem disse que a gente não pode cair? Quem disse que a gente já não caiu?” (2019, p. 29).


Que a gente possa se permitir… Cair, fugir, romper com um estilo de vida que adoece, frustra, produz sofrimento, exaustão… Que possamos encontrar com nossos desejos e sonhos reprimidos.



Referências

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.

ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro : Zahar, 1995.

ERASMO. A Civilidade Pueril. In: Revista Intermeio, Campo Grande, n. 2, 1995

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

Eduarda Moro

CRP 06/182921
Psicóloga, Mestra em Educação e Doutoranda em Ciências Humanas. Interessa-se por temas relacionados as humanidades, problemas da contemporaneidade e tudo aquilo que faz a vida mais viva e criativa. Pesquisadora na área de subjetividade e modos de subjetivação.

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Psicóloga, Mestra em Educação e Doutoranda em Ciências Humanas. Interessa-se por temas relacionados as humanidades, problemas da contemporaneidade e tudo aquilo que faz a vida mais viva e criativa. Pesquisadora na área de subjetividade e modos de subjetivação.

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