O fenômeno dissociativo é complexo por abranger ruptura de funções cognitivas importantes da identidade do ser humano.
Denominado “alters”, os estados separados do self, popularmente conhecidos por dupla personalidade, atualmente é um dos achados mais fascinantes da ciência pelo existir de múltiplas consciências em uma mesma mente.
Modelos teóricos científicos trazem explicações à luz de propostas de definições no levante da experiência dissociativa, como: a dissociação sem conceituação propriamente dita, a dissociação como sistemas inconscientes, a dissociação com modificação na consciência de conexões entre o ambiente e o eu, e a dissociação segundo mecanismo de defesa.
Na dissociação o funcionamento psicológico pode sofrer alterações significativas de maneira descontinuada no comportamento, na atividade motora, nos trejeitos corporais, na percepção, na emoção, na memória, na identidade e na consciência.
A manifestação de um “alter” ocorre a partir do grau de motivação, nível de estresse, tipos de conflitos e dinâmicas internas além da capacidade de resiliência emocional. Dessa forma, aqui se caracteriza um transtorno psiquiátrico de complexo diagnóstico pela sintomatologia heterogênea e difícil definição de critérios variados.
Para a neuropsicologia, fato curioso é que a experiência dissociativa também pode se apresentar como tarefa pautada em algo aprendido pela automatização de comportamentos repetitivos. Por exemplo, ao dirigir inúmeras vezes o mesmo trajeto para o trabalho, o mecanismo automático de conduzir um carro ao chegar no destino desejado passa despercebido ou imperceptível.
Isso se chama dissociação funcional, a função cognitiva da memória atua como mecanismo estratégico de economia de metacognições ou energia ao ponto de otimizar seu funcionamento pelo autoconhecimento já armazenado.
Estudos apontam 1,5% da população geral tem esse diagnóstico e atualmente, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) preconiza categorias para os Transtornos Dissociativos, a saber:
1. Transtorno Dissociativo de Identidade:
se caracteriza pela presença de estados alterados de duas ou mais personalidades diferentes que tomam posse em experiências distintas de maneira pontual ou duradoura; forte sentimento de alterações na sensopercepção de experiências como se houvesse um descompasso entre aquilo que ocorre e aquilo que se faz; e amnésias dissociativas recorrentes.
2. Amnésia Dissociativa:
É a dificuldade para lembrar dados autobiográficos relevantes que normalmente não se esqueceria, preservados pela memória.
3. Transtorno de Despersonalização/Desrealização:
É o sentimento de não estar conectado com a realidade, sentir estranhamento com o mundo, ter distorções visuais significativas, apresentar queixas somáticas e ter experiências de ”estar fora do corpo”.
4. Outro Transtorno Dissociativo Especificado:
Esse diagnóstico é aplicado quando não ocorre o preenchimento de critérios para Transtornos Dissociativos bem caracterizados.
Existem algumas manifestações clínicas frequentes para tal diagnóstico, são elas: Síndromes Crônicas e Recorrentes de Sintomas Dissociativos Mistos, Perturbação da Identidade devido à Persuasão Coercitiva Prolongada e Intensa, Reações Dissociativas Agudas a Eventos Estressantes e Transe Dissociativo.
5. Transtorno Dissociativo Não Especificado:
Nesse quadro a apresentação clínica do Transtorno Dissociativo não compraz às especificações diagnósticas.
Há outros elementos que ajudam a diferenciar quadros de dissociação saudável e patológica:
Dissociação Patológica:*
- Presença de sofrimento e prejuízos importantes na vida do sujeito;
- Experiências não fazem parte de um contexto cultural religioso;
- Presença de comorbidade;
- Não há controle sobre a experiência;
- A experiência é incapacitante e autocentrada;
- Não há autodirecionamento, incapacidade de assumir responsabilidade pelos próprios atos;
- Não há autocrítica;
- Dificuldade de tolerar frustração e de estabelecer metas para a própria vida;
* Fonte: Louza.; M. R. Palladino-Negro.; P. Junior.; P. J. N. Dissociação e Transtornos Dissociativos: Modelos Teóricos. Revista Brasileira de Psiquiatria. São Paulo: v.21, n.4, p.140,1999.
Dissociação Não Patológica:**
- Ausência de sofrimento e prejuízos na vida do sujeito;
- Experiências curtas, episódicas e de acordo com o contexto cultural/religioso;
- Ausência de comorbidades;
- A experiência é controlada, gera crescimento pessoal e é centrada nos outros;
- Presença de autodirecionamento, capacidade de se responsabilizar pelos próprios atos;
- Capacidade de duvidar da própria experiência, autocrítica;
- Maior tolerância à frustração e capacidade de estabelecer metas para a própria vida.
** Fonte: Louza.; M. R. Palladino-Negro.; P. Junior.; P. J. N. Dissociação e Transtornos Dissociativos: Modelos Teóricos. Revista Brasileira de Psiquiatria. São Paulo: v.21, n.4, p.140,1999.
Tratamento para transtorno dissociativo
O tratamento indicado para o Transtorno Dissociativo é a combinação entre medicamentos, psicoterapia (psicodinâmica e técnicas da terapia cognitivo-comportamental), estratégias terapêuticas de terapia baseada em fases e com foco no trauma, intervenções grupais e familiares.
É necessária equipe multidisciplinar no acompanhamento desses pacientes graves.
Na psicoterapia individual com ênfase nos Transtornos Dissociativos trabalha-se a construção de vínculos de ordem segura, a estabilidade de sintomas, a queixa de memórias relacionadas a algum trauma, além de, como lidar ou processar essas situações que causam hiperexcitação a estímulos residuais.
Portanto, o objetivo principal do tratamento é propor o reconectar as múltiplas personalidades, garantido saúde a integridade da pessoa. Esse processo se chama integração das várias identidades, principalmente no Transtorno Dissociativo de Identidade.
Tratamento farmacológico para transtorno dissociativo
Medidas farmacológicas também são indicadas para aliviar sintomas associados ao quadro de Transtorno Dissociativo: antidepressivos, ansiolíticos, estabilizadores de humor, antipsicóticos e antagonistas opioides.
Objetivos do tratamento
Existem alguns pontos observáveis para um projeto terapêutico singular centrado no tratamento dos Transtornos Dissociativos: o envolvimento de múltiplos aspectos que ajudem no cuidado integral de questões físicas, emocionais, familiares, sociais e espirituais; a informação de que o quadro do paciente é transitório mesmo não havendo controle sobre os sintomas; e a evitação de exames desnecessários, pois o problema não é decorrente de uma lesão orgânica.
Para o tratamento ser ainda mais eficaz, é imprescindível que a informação a respeito sobre o Transtorno Dissociativo seja veiculada com seriedade e baseado em conhecimento científico sólido, possibilitando que o preconceito e discriminação acerca do assunto sejam cada vez menores as pessoas que sofrem de algum Transtorno Dissociativo.
REFERÊNCIAS:
- Dal’Pizol.; A. D. et al. Transtorno Dissociativo de Identidade (Múltiplas Personalidades): Relato e Estudo de Caso. Revista Debates em Psiquiatria. mar/abr, 2015.
- Faria.; M. A. Transtorno Dissociativo de Identidade e Esquizofrenia: Uma Investigação Diagnóstica. Universidade de Brasília (Tese de Doutorado) Brasília, p.62-63, 2016.
- Gonçalves.; F. T. D. et al. Terapias Associadas ao Tratamento do Transtorno Dissociativo de Identidade. Research, Society and Development, v.11, n.5, e18211527911, 2022.
- Junior.; A. M. Alminhana. L. O. Experiências Religiosas/Espirituais: Dissociação Saudável ou Patológica? Horizonte. Belo Horizonte: v.14, n.41, p.122-143, 2016.
- Kieling.; C. Mari.; J. J. Psiquiatria na Prática Clínica. Barueri: Manole, 2013.
- Louza.; M. R. Palladino-Negro.; P. Junior.; P. J. N. Dissociação e Transtornos Dissociativos: Modelos Teóricos. Revista Brasileira de Psiquiatria. São Paulo: v.21, n.4, 1999.
- Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais: DSM-5 (American Psychiatric Association) 5ed. Porto alegre: Artmed, 2014.
- Silveira.; R. A. T. Janczura.; G. A. Stein.; L. M. O Que Está Errado com a Dissociação Funcional? Ciências &Cognição, v.17, n.2, 2012.