A falta que a falta faz

Para Luiz Felipe

Fui consumidora fiel do canal da jornalista Julia Tolezano, o JoutJout, prazer, por muitos anos. Aprendi, por intermédio dela, sobre autossabotagem, autoestima, erros que insistimos em cometer… Dia desses, na casa de um amigo querido, encontrei um livro que me remeteu a um vídeo específico do canal. Vídeo esse que trata da questão daquilo tudo que entendemos faltar em nós, intitulado de: A falta que a falta faz

A descrição entrega um pouco mais sobre a concepção do vídeo, que foi produzido a partir da leitura do livro A parte que falta (de autoria de Shel Silverstein):

“não sei quanto a você, mas sempre falta um trocinho. às vezes falta muita coisa, às vezes só uma coisinha que parece um mundo de faltas. pra muitos falta o indispensável e aí o que falta pra você parece nada, mas é demais de onde você tá olhando. o negócio é que vai faltar, e depois não vai mais. depois vai faltar de novo e lutar contra a falta parece uma luta cansativa demais pra entrar. então que tal entender a falta, andar com ela, fazer de tudo pra preenchê-la, mas sabendo que ela volta. e que volte! porque saber que vai voltar é um belo de um carinho.”

O vídeo é um convite para pensarmos sobre aquilo que nomeamos e sentimos como falta.

Do significado da palavra, no dicionário, encontramos traduções do termo falta, para: privação, carência, morte, ausência de coisa precisa, útil ou agradável. A falta parece estar, sobretudo, conectada a noção de supressão, de algo ou alguém. 

Na visão da psicanálise, a falta é necessária para que o sujeito possa desejar. E, mais do que isso, é na falta que se assume a posição de busca, de procura, de impulsionamento. Existem faltas que são decorrentes de questões menos complexas, tal como é com o sentimento atrelado a falta de um objeto de consumo, ou até mesmo a falta de uma condição profissional melhor. 

Tem quem sente como falta aquilo que é de ordem estética, buscando um ideal de beleza, de corpo, de um modo de vida que o conduza ao lugar onde a falta já não possa existir e a idealização é concretizada. 

Existe muita coisa na nossa vida que sentimos como falta, e só quando colocamos essas coisas nesse lugar, daquilo que falta, é que somos impulsionados (ou não) a buscar a parte que falta. Esta que pode ser de alguém, de uma situação, de um lugar, do corpo perfeito, de um bem material, de um trabalho melhor… A falta é uma condição intrínseca ao sujeito contemporâneo, e que é demarcada pelo modelo socioeconômico em que estamos inseridos: o capitalismo. 

A falta e o que usamos para preenchê-la

É difícil imaginar uma sociedade de vida mais simples, na qual nada falta. Até porque é a falta nossa motriz. 

Há tempo atrás, escrevi sobre um livro intitulado de “Ideias para adiar o fim do mundo”, de autoria do líder indígena Ailton Krenak. A obra faz parte de uma coletânea que se complementa e que denuncia nosso modo, sucateado, de encarar a vida moderna. 

Em “A vida não é útil”, Krenak, atenta para como nossa concepção de progresso está conectada com a produção de tecnologia. De modo que, somos constantemente apresentados a diferentes e novos aparatos tecnológicos-mercadológicos. Isso não só cria uma falsa ideia do que é necessário para viver, mas também nos conduz a experimentar uma falta que, por vezes, parece ser suprida pelo consumo, por meio da aquisição de materialidades. 

Tenho certeza de que você já ouviu falar sobre pais que suprem sua falta através de compensação (aqui uma matéria interessante sobre a temática). Ou seja, apoiam-se na via material para compensar o filho pela falta, seja essa de afeto, cuidado, amor, diálogo, atenção, etc. 

Mas, será mesmo possível suprimir a falta de afeto por intermédio de um objeto material? 

Convite ao exercício de pensamento:

  • Quantas vezes você já tentou suprir com materialidades a falta de alguém ou de algo que, acredita, faltar? 
  • Nessas situações, qual foi o sentimento que surgiu após a compensação? Quanto tempo durou? 
  • O sentimento de algo que estava faltando cessou? 

A falta que a falta faz

Sobretudo, uma certeza podemos ter: o sentimento, atrelado a noção de falta, há sempre de retornar. Sempre vai faltar.

Nicolau (2021, p. 38), se ampara na teoria psicanalítica para nos mostrar que:

“Na análise, o encontro com a falta implica em que o sujeito renuncie aos ideais e à completude com o Outro, aceitando que é castrado. É com sua falta-a-ser que deverá se encontrar, pois ele está em permanente contato com o vazio que o constitui e com sua divisão estrutural, o que constitui um fator gerador de angústia, colocando o sujeito em constante busca de um significante que possa criar a ilusão de preenchimento e completude. O objeto, segundo Lacan (1988), vem no lugar do ser que foi perdido, suprindo aquilo de que o sujeito foi privado simbolicamente. Isso marca a impossibilidade em eliminar a falta, pois o objeto ausente que completaria o sujeito jamais é encontrado, estando para sempre perdido, o que confere ao desejo sua permanência de para sempre insatisfeito. E isso move o sujeito em direção a novos objetos, na tentativa de obter plena satisfação, que jamais será alcançada.”

Esse trecho nos apresenta questões centrais para compreendermos nossa própria condição, enquanto sujeitos modernos e da conexão dessa condição com a ideia de falta

Sobre a falta, entendemos que: 

  • Está, primeiramente, relacionada a uma ideia de que não somos inteiros, completos. Como se fosse necessário buscar o que falta, para então nos constituirmos como um indivíduo completo. 
  • Não pode e não será “saciada”, pelo menos não de forma integral. Quando aquilo que falta é alcançado, realizado, o sujeito sente (não de forma consciente, é claro) que há outras lacunas que faltam

Por fim, o que nos conduz em direção a uma vida que se movimenta, que busca, que traça objetivos, não é o que nos preenche. Muito menos aquilo que é preenchido com materialidade. Nada há de nos preencher. Somos indivíduos faltantes, e por isso mesmo, é que desejamos e seguimos. 

Contudo, é preciso atentar-se a isso. Tem coisas acontecendo no aqui e agora. A vida é uma delas. Como diz Jout Jout, vai faltar e depois não vai mais, mas depois vai faltar de novo. E é nesse percurso que a vida acontece, com aquilo que falta… 


Referência citada: NICOLAU, Roseane Freitas. Quem quer saber da falta? A psicanálise em tempos sombrios. Trivium,  Rio de Janeiro ,  v. 13, n. spe, p. 34-41, mar.  2021.  

Eduarda Moro

CRP 06/182921
Psicóloga, Mestra em Educação e Doutoranda em Ciências Humanas. Interessa-se por temas relacionados as humanidades, problemas da contemporaneidade e tudo aquilo que faz a vida mais viva e criativa. Pesquisadora na área de subjetividade e modos de subjetivação.

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Psicóloga, Mestra em Educação e Doutoranda em Ciências Humanas. Interessa-se por temas relacionados as humanidades, problemas da contemporaneidade e tudo aquilo que faz a vida mais viva e criativa. Pesquisadora na área de subjetividade e modos de subjetivação.

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