Texto escrito em coautoria de Tuanny de Paula, Jornalista e Especialista em Comunicação e Marketing Digital
Narciso tinha um magnetismo fora do comum. Dotado de uma beleza única, sabia disso e desprezava todas as declarações apaixonadas que batiam à sua porta. Ninguém era bonito ou bom o suficiente para suprir as suas necessidades carnais e espirituais. O ego falava mais forte. Parecia que a solidão era mais agradável do que dividir com alguém que não era belo o suficiente para ele.
Entre os inúmeros rejeitados pelo jovem, esteve Eco. Amaldiçoada a repetir as palavras de quem se dirigia a ela, aproximou-se de Narciso apaixonada e sofreu uma rejeição tão grande que foi mais dolorosa do que sua penitência. Por fim, morreu de fome e sede, pois a beleza da vida lhe foi tirada.
Mas, Narciso pagou por seu egocentrismo. Foi amaldiçoado por Nêmesis, a deusa da vingança, que levou o rapaz a visualizar e apaixonar-se pelo próprio reflexo no fundo de um lago. Não conseguia desviar os olhos da perfeição que ele sempre desejou e, por fim, morreu de amor por algo que não poderia ter: ele mesmo.
É irônico pensar que na vida cruzamos com diversos Narcisos, atraídos pelo magnetismo de suas belezas. E essa ilusão é tão superficial, como uma água parada que, ao ser tocada, cria ondas que revelam o conteúdo real ao fundo.
Porém, essa definição não está apenas no outro, está em nós mesmos também. O ego de Narciso encontra-se na construção do nosso eu, primitivo no início, depois limitado pela imposição das demais realidades que interagimos.
É possível pensar na seguinte situação: Sonia buscava um emprego ligado aos seus valores, ao que acredita e ao que busca para o seu crescimento profissional e pessoal. Após uma entrevista para uma vaga que parecia perfeita, mas que ela entendia que era um grande desafio, as expectativas estavam altas para o desejado sim.
Veio a rejeição. “Será que eu não sou boa o suficiente?”, perguntou-se. O ego, onde se encontra o centro de tudo o que Sonia é, estava em sofrimento. E isso é errado?
Meu ego não é egoísta. Ou é?
Quando nascemos, as nossas interações com o mundo se dão de forma mais instintiva. Ainda não estamos limitados pela realidade imposta pela convivência em sociedade, então somos movidos pelos impulsos que nos causam prazer, aquilo que Freud denominou de pulsão.
Conforme crescemos, esses impulsos se tornam cada vez menores, pois tomamos consciência do espaço que ocupamos, nos limitando pelas interações e identificações que encontramos no caminho. A realidade do mundo passa a impor limites ao nosso ego.
Não podemos negar que ter um ego bem estruturado é importante para que se construa aquilo que nomeamos de autoestima, mas há quem mergulhe fundo nisso, tal como Narciso, submergindo no pântano das ilusões egóicas, nas águas profundas de um ego que se converge em um eu ensimesmado. Espaço no qual não existe lugar para um outro, para um não, para o limite.
Retomando a história de Sonia, as ilusões criadas por ela para a vaga inflaram o seu ego e a fizeram criar ilusões sobre o futuro naquela vaga. Mas será que ela estava realmente preparada para encarar a realidade daquela vaga? É preciso reconhecer que o domínio de conhecimento é algo que estamos sempre em busca, e que talvez, ela não tivesse o suficiente para aquele momento. Ou seja, Sonia precisa olhar o próprio reflexo no lago e tocá-lo, para que assim as ondas criadas pelo toque mostrem a realidade do que o eu pode, naquele espaço-tempo.
Sobretudo, a grande questão do ego talvez seja sobre sua capacidade de encarar a frustração e lhe atribuir um novo significado, para que o que é experimentado como prejuízo possa ser convertido em aprendizado.
O ego em sofrimento
Quando o ser humano está imerso em seu próprio ego, fecha-se para o universo, assim como Narciso preso em seu próprio reflexo. Por um momento parece existir só aquilo que sente, como se o mundo ao redor se dissipasse. A dor demanda uma certa urgência, desperta algo no eu que exige uma espécie de atenção inebriante. Isso acontece com certa frequência ante ao sentimento de sofrimento, a dor parece consumir qualquer tentativa de conexão com o que é externo a ela.
Que é doloroso, a gente sabe que é. Não vamos deixar de invalidar a dor, pois ela é concreta, real e diz algo sobre nós mesmos. O importante aqui é saber para onde podemos levá-la, dando a ela um formato de sublimação. É claro que a dor pode ter fim nela mesma e não há nada de errado nisso, mas para produzir diferença na jornada de autoconhecimento e descoberta do eu, faz-se necessária a tentativa mínima de aprender com ela.
A ideia de sublimação refere-se a um processo psíquico, que a partir da experimentação da angústia, ou de um episódio de sofrimento, atribui um novo sentido ao acontecimento, dando a esse uma destinação mais consciente e contornada pelo aprendizado. Isso não só é benéfico para o ego que se encontra machucado, mas possui magnitude para subverter também a noção egóica de um eu demarcado pela solitude.
Quando a dor é compartilhada, expressa pela fala, pela arte ou qualquer outra via pela qual se faz possível de partilhá-la, existe algo que se soma ao eu. O eu encontra o outro. A equação do eu + eu do outro, torna viável a compreensão de que não há existência que não seja demarcada pelo rompimento de idealização do ego.
Susan Sontag (2003) explica que ao nos depararmos com o outro em sofrimento, temos dois caminhos a seguir: o da empatia; e o da falta dela. No entremeio das duas vias está o ego. Quando se compreende que o outro sofre como eu, que o ego do outro também o acusa de falha, questões como aquela citada anteriormente pela personagem Sônia, podem ganhar outro sentido. Invertemos assim a questão: “Será que eu não sou boa o suficiente?”, para: “Será possível que algum eu seja bom o suficiente para dar conta da idealização do ego?”.
A resposta é tão óbvia quanto a própria pergunta sugere. Não há possibilidade de existência narcísica que se sustente diante da noção de que nenhum ego é bom o suficiente para ele próprio.
Referência:
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.