Ideias para adiar o fim do eu não faltam. Contudo, esse é o último texto da seção. Como uma espécie de conclusão, aproveito para tratar agora de questões, subestimadas quando falamos de depressão e ansiedade. Vimos os diferentes aspectos, que estão relacionados à degradação da vida humana. Porém, pouco se fala sobre como a exaustão e a frustração são fatores operantes em tudo que concerne ao esgotamento da vida, e como estas duas temáticas são ligadas uma a outra.
De volta à Krenak:
“Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70% estão totalmente alienados do mínimo exercício de ser? A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade. Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos” (Krenak, 2019, p. 9)
É o que tem acontecido. Temos ficado loucos, mas apenas no sentido ruim da palavra. Nada que chegue perto de uma loucura libertadora, daquela que faz ver o mundo a partir de uma outra perspectiva… Temos ficado loucos com a loucura que adoece. E, temos, e muito, adoecido.
O momento atual parece privilegiar o diagnóstico. Não entendo ainda, da urgência que tanta gente tem em ser diagnosticada, principalmente porque, acredito que é o modo de vida contemporânea que está corrompido e adoecido.
Dado que, o tratamento para a loucura e adoecimento da qual sofremos é restrita ao paciente, é como se o diagnóstico atestasse apenas que somos mais um caso, dentre os tantos outros que sofrem e perecem. Vale dizer aqui que, o costume de focar apenas no indivíduo quando busca-se por tratamento, é proveniente de uma “herança” de um modo de se fazer medicina que é centralizado no sujeito. É como se colocássemos entre parênteses as questões de origem social, política, econômica, e olhássemos, quase que exclusivamente, para aquela pessoa adoecida.
Claro que, existe a compressão de que transtornos como, depressão e ansiedade, são multifatoriais. Porém, o tratamento adotado nesses casos, na maior parte das vezes, é de ordem individual. Não há como negar a funcionalidade e a ajuda que a pílula, a terapia e tudo que é individualizado nesse tipo de tratamento produzem no paciente. Mas, com o grande aumento de casos desses transtornos, precisamos compreender que o modo como vivemos atualmente é o que produz o adoecimento psíquico – não falo aqui, é claro, de casos específicos de ordem biológica.
Então, como proceder?
É necessário, antes de tudo, retroceder. Entender como chegamos ao estilo de vida que vivemos hoje. Uma vida que nos leva a exaustão mental e a frustração.
Vida civilizada, indivíduo civilizado: caminhos para a frustração e exaustão mental
Um dos precursores, daquilo que nos induz ao padrão de vida atual, é um ideal atribuído primariamente a aristocracia: a ideia de civilização. É por isso, que quando nos referimos a sociedade, a um progresso na ideia de comportamentos culturais compartilhados, falamos de sociedade civilizada.
O conceito de civilidade e sua função, como aponta o autor Norbert Elias, se devem “[…] a um curto tratado de autoria de Erasmo de Rotterdam, De civilitate morum puerilium (Da civilidade em crianças)” (1994, p. 68). Esse tratado, também conhecido como “A civilidade pueril” foi desenvolvido no ano de 1530. O autor, Erasmo, teve como objetivo, produzir um documento que listasse e padronizasse comportamentos considerados essenciais para a formação de uma juventude civilizada:
“A arte de instruir crianças consta de diversas etapas. A primeira e a principal consistem em fazer com que o espírito ainda tenro receba as sementes da piedade; a segunda que tome amor pelas belas artes e aprenda bem; a terceira, que seja iniciada nos deveres da vida; a quarta, que se habitue, desde cedo, com as regras da civilidade” (ERASMO, 1530, s.p.).
No primeiro capítulo, o autor trata das “atitudes corretas e incorretas” com cada parte do corpo. Trago aqui algumas das citações desta seção, para pensarmos sobre costumes.
Dos olhos, aprendemos que: “De fato, olho ameaçador é sinal de violência, enquanto olho perverso traduz maldade. Olho erradio e perdido, no espaço, sugere demência” (1530, s. p.). Em meu preferido, no capítulo seis: “Mesmo aqueles que a natureza destinou que fossem plebeus, humildes de nascimento e até rústicos, todos aqueles deveriam compensar com o brilho dos hábitos as deficiências da sua categoria social”. Esse último, tão atual…
Muitas destas preocupações, com normas de etiqueta e conduta social, foram perdendo espaço e importância com o passar do tempo. Mas, vez ou outra, uma menina ainda acaba ouvindo, de alguém mais velho, que precisa “sentar-se como uma moça”. O que demonstra que a ‘civilização’ é um processo com resquícios do passado, que vez ou outra se retomam afim de reafirmar certas condutas morais e do corpo.
Essas regras de etiqueta e de comportamento são parte de algo muito maior. Compõem aquilo que é nomeado de conduta social. Ou seja, o comportamento considerado adequado em determinada situação.
Cada atualização do sistema de códigos sociais, nos mostra o que se constitui como aceitável ou não enquanto padrão comportamental, em determinado espaço-tempo. Os códigos sociais, a princípio, produzidos e pensados para a nobreza como mais um modo de distinguir esse lugar de riqueza dos pobres e plebeus, foram, com o passar dos anos, sendo introjetados e disseminados por outras classes e sujeitos.
Mas, é deste cuidado demasiado com o comportamento do corpo, os modos à mesa, o jeito certo de olhar, que fizeram com que chegássemos naquilo que hoje se traduz no conceito de cuidado e ética de si – conceitos cunhados pelo filósofo Michel Foucault (1926-1984). Uma forma de governança do próprio corpo, para que não escape daquilo que é considerado normal.
Você pode estar se perguntando, qual a relação dos conceitos de civilização e governo do corpo, com os assuntos tratados no início do texto, quando falei sobre exaustão e frustração… É sobre isso que o próximo texto e parte final dos ensaios sobre “ideias para adiar o fim do eu”, trata.
Referências
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro : Zahar, 1995.
ERASMO. A Civilidade Pueril. In: Revista Intermeio, Campo Grande, n. 2, 1995
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.