Uma das grandes questões do mundo contemporâneo é na verdade um problema antigo: a educação escolar. Os altos índices relacionados a dificuldade de aprendizagem chamam atenção. O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) é inclusive um termo mais recorrente do que o normal nas instituições de ensino, há quem diga até que vivemos uma epidemia de TDAH. Contudo, sabe-se que o problema está justamente na proliferação de diagnósticos rasos e imprecisos. Ainda assim, isso nos convida a pensar sobre o que tem dado errado com a educação escolar de nossas crianças.
Muito tempo se passou desde que começamos a discutir o problema da educação escolar. Porém, anos passam, crianças entram e saem das escolas, e as críticas quanto ao processo de escolarização continuam as mesmas. As recomendações para uma possível mudança também continuam sendo similares, mesmo quando já se mostraram ineficazes. Os investimentos feitos nesses anos de luta não foram suficientes ou eficientes, pois se perdeu o foco do problema.
Mas afinal, existe um foco?
Pensar no foco do problema não seria acreditar em uma causalidade circular, onde existe começo, meio e fim. Ou simplesmente culpabilizar o método de ensino com o qual nossos professores trabalham. O problema da educação escolar é mais complexo que isso…
Educação escolar: como a precarização do ensino prejudica as crianças em processo de escolarização
Não é novo o discurso acerca da democratização do ensino como uma garantia de mudança real na educação. A democratização pode ser entendida como um processo que consiste em garantir o acesso à educação básica para todas as crianças, e posteriormente, facilitar o ingresso nas universidades. Mas, de qual democracia se fala? Apenas garantir o ingresso à escola não é garantia de oportunidades iguais. É necessário refletir sobre as condições em que esse acesso se dá e principalmente, refletir sobre a existência de duas realidades presentes em nosso contexto social.
Duas realidades tão discrepantes que basta passar em frente a uma escola particular e a uma escola pública para perceber as diferenças gritantes, que refletem também no modo de conduzir e pensar o planejamento das aulas. Duas realidades tão desiguais, que para cada uma existe um diferente modo de conceber a educação escolar, é o que Sanches (2002) vai nomear de: o ensino de excelência – para os setores privilegiados, e o de baixa qualidade – para os setores populares.
Mas por que não se fala sobre essas duas realidades quando o problema da educação é discutido? Uma suposição é a de que para considerar estas distintas realidades, seria necessário abandonar o discurso da meritocracia, visto que já se nasce em uma realidade desigual ou muito privilegiada, e não se pode culpabilizar o sujeito por isso.
Na escola, estas duas realidades se apresentam como o “circuito da excelência” e o “circuito do desânimo” (Sanches, 2002). E se as diferenças no modo de se vestir, de dialogar, diferenças que são visíveis a olhos pouco treinados e que chamam atenção de quem não estuda sobre o tema, a diferença existente no método de ensino é ainda maior e mais preocupante. Se o espaço físico de ambas as escolas não fosse discrepante o suficiente, a própria equipe que ampara o professor é diferente em cada um destes circuitos. O circuito de excelência conta com equipe preparada, formada para estas especificidades, que subsidiam e complementam o trabalho do professor. Já no circuito do desânimo, o que se vê por vezes é uma direção que não auxilia os professores diretamente no trabalho educacional, e que funciona mais na lógica de “punir alunos” (ex: aluno vai para direção quando atrapalha as aulas).
No circuito de excelência não existe fracasso escolar, desistência ou repetência, estes alunos desde muito cedo precisam apenas se preocupar em estudar para entrarem em universidades de alta exigência, federais, estaduais, para cursar, as já destinadas, carreira de prestígio. Vale ressaltar que 90% dos alunos destas escolas, ingressam sem problemas nas universidades, e os cursos mais procurados entre estes alunos estão geralmente relacionados a carreiras notórias, como a medicina, as engenharias, etc..
A realidade do circuito do desânimo é absurdamente inversa… Composto por escolas públicas – e escolas particulares, cujo único objetivo é o lucro do dono destas escolas, essas instituições sofrem com o descaso e a verba mínima repassada pelo Estado. Se no circuito de excelência estuda-se para chegar a grandes universidades, aqui, encaramos uma outra realidade. Porém, isso não se deve ao insucesso dos alunos, mas sim a defasagem do ensino público quando comparado a redes de ensino privadas.
Educação escolar: alguns dados para reflexão acerca do fracasso escolar
Existem duas realidades em que a educação se situa, como acima colocadas: circuito de excelência e circuito do desânimo. Até este ponto, deve ter ficado claro que os alunos destas realidades são diferentes, e não falo aqui apenas da diferença subjetiva, mas provenientes de condições socioeconômicas diferentes. Essa diferença se constitui como um fator determinante no acesso a um ensino de qualidade para uns e um ensino precário para outros.
O próprio estímulo familiar das crianças do circuito de excelência é diferente. Enquanto estes têm um ambiente que instiga a leitura, fácil acesso a informações e a instrumentos culturais e novas tecnologias, muitos alunos do circuito do desânimo enfrentam uma realidade desigual desde a infância, seja pela pobreza em si, seja pela falta de tempo dos pais que batalham diariamente para sobreviverem no sistema capitalista.
Essa diferença mostra-se principalmente no ingresso destes circuitos na escola, na alfabetização destas crianças. A alfabetização é aqui entendida como um processo que começa por volta do segundo ano de vida, tem a duração de quatro anos em média, e acontece em três períodos: pré-fonético, silábico e alfabético. É um processo cognitivo, produto da interação da criança com materiais escritos.
Quase 100% das crianças que entram na educação básica do circuito de qualidade já estão alfabetizadas. Crianças alfabetizadas do circuito do desânimo não chegam a 10%, e mais de 50% se encontram nos níveis iniciais de alfabetização (pré-fonética), e irão demorar de um a dois anos para alfabetizarem-se. De modo que a alfabetização do circuito de qualidade se dará na primeira série, já o circuito do desânimo, apenas na metade da terceira série. Mas ainda assim insiste-se em propagar a ideia de “fracasso escolar”, como forma de culpabilizar a própria criança.
Falaremos mais sobre a questão do fracasso escolar na continuação do texto, clicando aqui.
Referência:
SANCHES, Carlos. A escola, o fracasso escolar e a leitura. In: LODI, Ana Claudia Balieiro et al. (Orgs). Letramento e minorias. Porto Alegre, Mediação, 2002, p. 15-26.