O Diabetes Mellitus é uma doença crônica que afeta milhões de pessoas em todo o mundo e pode causar diversas complicações no organismo. Entre essas complicações, as doenças cardiovasculares se destacam como as mais graves e frequentes. Estima-se que centenas de milhões de pessoas tenham diabetes globalmente, e a maioria dos casos é do tipo 2.
Infelizmente, problemas do coração são a principal causa de morte entre os diabéticos – até 80% dos pacientes com diabetes tipo 2 acabam falecendo por complicações cardíacas ou circulatórias. Esses números superam até mesmo as mortes causadas por outras doenças graves, como HIV, tuberculose e câncer de mama.
Diante desse cenário, é fundamental entender como o diabetes afeta o coração, quais mecanismos biológicos estão por trás desses danos, e o que a medicina tem feito para prevenir e manejar os riscos cardiovasculares em quem tem diabetes.
Mecanismos Biológicos: Como o Diabetes Danifica o Coração
O diabetes, especialmente quando mal controlado, desencadeia uma série de processos biológicos nocivos ao sistema cardiovascular. Hiperglicemia crônica (taxa elevada de açúcar no sangue) e resistência à insulina são as marcas do diabetes tipo 2 e os principais vilões por trás dos danos ao coração e vasos sanguíneos:
Dano ao endotélio (camada interna das artérias): Níveis altos de glicose causam disfunção endotelial, ou seja, o revestimento interno das artérias perde suas propriedades protetoras. Isso permite a entrada de células inflamatórias e colesterol na parede dos vasos, dando início à formação de placas de gordura (aterosclerose). O excesso de açúcar também se liga a proteínas e lipídeos, formando substâncias chamadas produtos de glicação avançada (AGEs). Os AGEs deixam as artérias mais rígidas e espessas, prejudicando a elasticidade e a função dos vasos. Além disso, eles “sequestram” óxido nítrico – uma molécula que ajuda os vasos a relaxar – reduzindo a dilatação dos vasos e contribuindo para pressão alta. Esse dano endotelial é considerado a alteração inicial que predispõe às doenças das artérias.
Colesterol modificado e inflamação: A hiperglicemia e a resistência à insulina alteram o metabolismo das gorduras. O colesterol LDL (o “colesterol ruim”) torna-se mais facilmente oxidado e glicado, ficando “mais agressivo” contra as artérias. Essas partículas modificadas de gordura se depositam na parede dos vasos e são absorvidas por células inflamatórias, que acabam morrendo e formando o núcleo das placas ateroscleróticas. O resultado é um acúmulo de gordura e células mortas nas artérias, ou seja, placas de aterosclerose. Além disso, o estado de resistência à insulina geralmente vem acompanhado de outros problemas metabólicos, como triglicerídeos elevados e HDL baixo (dislipidemia) e hipertensão. Todo esse conjunto gera um ambiente de inflamação crônica nos vasos sanguíneos, piorando ainda mais a formação de placas e estreitando as artérias.
Estresse oxidativo: O excesso de glicose promove a produção de radicais livres (espécies reativas de oxigênio). Esses radicais livres causam estresse oxidativo, danificando as células do coração e dos vasos. Eles oxidam as partículas de LDL, desencadeiam reações inflamatórias e lesionam diretamente estruturas celulares. Com o tempo, o estresse oxidativo contribui para envelhecimento e enrijecimento precoce dos vasos, facilitando a ocorrência de hipertensão e aterosclerose.
Tendência à coagulação: No diabetes, o sangue fica mais propenso a formar coágulos. As plaquetas (células responsáveis pela coagulação) tornam-se mais “grudentas” e aderentes nas pessoas diabéticas. Somado a isso, a própria inflamação e lesão do endotélio ativam mecanismos de coagulação. Esse estado pró-trombótico significa que coágulos podem se formar mais facilmente dentro de artérias já estreitadas, agravando o risco de um entupimento súbito do vaso.
Em resumo, hiperglicemia e resistência à insulina criam um “perfeito temporal biológico” para o coração. Elas danificam as artérias ao provocar inflamação, depósitos de gordura, perda da flexibilidade vascular e aumento da coagulação, preparando o terreno para eventos cardiovasculares graves.
A seguir, veremos como esses mecanismos se traduzem em doenças como infarto, derrame e insuficiência cardíaca.
Infarto do Miocárdio e Aterosclerose Coronária
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Uma das principais consequências do diabetes no sistema cardiovascular é a aceleração da aterosclerose, especialmente nas artérias coronárias (que irrigam o coração). A combinação de colesterol alterado, inflamação e disfunção endotelial faz com que pessoas com diabetes desenvolvam mais placas de gordura nas artérias do coração, e mais cedo na vida, do que indivíduos não diabéticos. Essas placas podem restringir o fluxo de sangue no músculo cardíaco, causando doença arterial coronariana – que se manifesta como angina (dor no peito aos esforços) e, no pior caso, infarto.
No infarto do miocárdio, ocorre a obstrução total de uma coronária, geralmente pelo rompimento de uma placa de gordura instável seguida da formação de um coágulo. O diabetes favorece exatamente esse desfecho: as placas tendem a ser mais instáveis e com núcleo gorduroso grande, devido à inflamação intensa; e o sangue mais coagulável facilita a trombose. Como explicou o cardiologista Dr. David Fitchett, a parede arterial do diabético torna-se mais suscetível à ruptura da placa, expondo o conteúdo gorduroso ao sangue. Isso dispara a formação de um coágulo que pode bloquear a artéria e causar um infarto.
O resultado é que o risco de infarto em pessoas com diabetes é várias vezes maior. Estudos populacionais indicam que o diabético tem cerca de 2 a 4 vezes mais chance de sofrer infarto do que alguém sem diabetes da mesma idade.
Na prática, ter diabetes muitas vezes equivale a já ter tido um infarto prévio em termos de risco futuro. Não é de surpreender que, segundo a Sociedade Brasileira de Diabetes, a doença cardiovascular responda por cerca de 40% das mortes em diabéticos, sendo o infarto o principal responsável.
Outra característica preocupante é que diabéticos podem ter infartos mais “silenciosos” ou atípicos. Devido a danos nos nervos (neuropatia diabética), aproximadamente 20% a 30% dos pacientes com diabetes não apresentam a clássica dor forte no peito durante um infarto. Em vez disso, podem sentir apenas falta de ar, sudorese, tontura ou um mal-estar vago – sintomas facilmente subestimados.
Isso faz com que muitos demorem a buscar ajuda, perdendo tempo precioso de tratamento. Por isso, recomenda-se que pessoas com diabetes tenham acompanhamento cardiológico regular, mesmo sem sintomas, para detectar sinais precoces de problemas no coração.
Acidente Vascular Cerebral (AVC)
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O derrame cerebral, ou AVC, é outra grave ameaça ligada ao diabetes. Assim como nas coronárias, a aterosclerose pode afetar as artérias que levam sangue ao cérebro, incluindo as carótidas e as arteríolas dentro do próprio cérebro. A hiperglicemia contribui para danos nos vasos cerebrais grandes e pequenos, elevando tanto o risco de AVC isquêmico (quando uma artéria do cérebro entope) quanto de AVC hemorrágico (quando há rompimento de um vaso no cérebro, embora esse esteja mais relacionado à pressão alta, que frequentemente acompanha o diabetes).
Estatísticas mostram que o diabético tem de 1,5 a 3 vezes mais probabilidade de sofrer um AVC em comparação a não diabéticos da mesma faixa etária. Além disso, o AVC em pacientes com diabetes costuma ser mais grave e com maior taxa de mortalidade e sequelas. Isso se deve, em parte, ao fato de o diabetes frequentemente vir associado a hipertensão arterial, o principal fator de risco para derrames, criando um efeito cumulativo.
Homens e mulheres diabéticos apresentam incidências semelhantes de AVC (o diabetes “anula” a vantagem que as mulheres normalmente teriam) e esses índices dobram quando comparados à população sem diabetes. Ou seja, o diabetes iguala os riscos entre os sexos e, infelizmente, aumenta muito as chances de um derrame.
No AVC isquêmico, o mecanismo é parecido com o do infarto: formação de placa e coágulo obstruindo uma artéria cerebral. Todos os processos já descritos – disfunção endotelial, colesterol oxidado, inflamação e sangue hipercoagulável – contribuem para entupir as artérias do cérebro. Um detalhe adicional é que o diabetes também prejudica os vasos sanguíneos menores (microangiopatia), levando a lesões disseminadas na circulação cerebral ao longo dos anos. Isso pode causar pequenos AVCs “silenciosos” e deterioração cognitiva (demência vascular) com o passar do tempo.
Os sinais de um AVC podem incluir fraqueza súbita em um lado do corpo, dificuldade para falar, boca torta ou perda de visão, e exigem atendimento imediato. Diabéticos devem ter cuidado redobrado com sintomas neurológicos súbitos, pois a combinação de diabetes e pressão alta coloca-os em alto risco de um derrame. Felizmente, controlar rigorosamente esses fatores (glicemia e pressão) ajuda a proteger o cérebro a longo prazo.
Insuficiência Cardíaca e Cardiomiopatia Diabética
Além de infartos e AVCs, o diabetes contribui significativamente para a insuficiência cardíaca (IC) – uma condição em que o coração perde a capacidade de bombear sangue adequadamente. Muitos diabéticos desenvolvem IC ao longo da vida, seja como consequência de infartos prévios que enfraqueceram o coração, seja por um processo mais direto de lesão do músculo cardíaco pelo diabetes crônico, conhecido como cardiomiopatia diabética.
Na cardiomiopatia diabética, anos de hiperglicemia e resistência à insulina alteram a estrutura e o metabolismo do músculo cardíaco. O coração de quem tem diabetes frequentemente apresenta acúmulo de gordura no músculo, fibrose (cicatrização) e disfunção das mitocôndrias (as usinas de energia das células cardíacas). Esses efeitos ocorrem mesmo na ausência de obstruções nas artérias coronárias. O resultado é um coração que fica mais rígido e menos eficiente, levando inicialmente a uma dificuldade de relaxamento (disfunção diastólica) e, com o tempo, à insuficiência cardíaca, mesmo com fração de ejeção preservada (um tipo de IC frequentemente observada em diabéticos).
Referências:
- Sociedade Brasileira de Diabetes – “Pessoas com diabetes têm o dobro de risco para infarto agudo do miocárdio”. Publicação SBD, disponível em diabetes.org.br (acessado em 2023)
- Portal Drauzio Varella – Juliana Conte. “Por que diabetes aumenta risco de doenças cardiovasculares”. Publicado em 21/06/2016; revisado em 11/08/2020
- EurekAlert! – Mayo Clinic. “Diabetes pode levar à insuficiência cardíaca de forma independente, mostra estudo populacional”. Comunicado de imprensa, 2 de janeiro de 2020
- Afya Papers (Cardiopapers) – Humberto Graner. “Qual medicação para Diabetes é melhor para o coração?”. Publicado em 06/09/2023
- LaborNews – “Reino Unido se torna primeiro país a oferecer ‘pâncreas artificial’ na rede pública para auxiliar no controle do diabetes tipo 1”. Publicado em 2023