Texto escrito em coautoria da psicóloga Maria Carolina da Silveira Moesch. Mestra em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais
Muitas notícias têm sido veiculadas sobre a saúde mental, ou mais especificamente a falta dela, na pós pandemia, ou na sindemia (termo que vem sendo utilizado para o momento que estamos vivendo, já que sindemia, significa um conjunto de problemas de saúde interligados). Aponta-se para um aumento significativo do sofrimento humano decorrente dos diferentes efeitos da Pandemia, sejam eles efeitos físicos, sociais, culturais e psicológicos.
Sabe-se que a emergência humanitária sanitária que vivemos, acabou descortinando outras fissuras da humanidade: as violências de gênero aumentaram, as violências contra as crianças e adolescentes, a fragilidade atual das diferentes políticas públicas, em especial a educação, assistência social e saúde. Isso sem falar das questões socioeconômicas, a falta de comando dos governos para uma melhor gestão da pandemia, e ainda as questões de saúde e saúde mental que já existiam e que se tornaram mais agudas. Vivemos agora momentos de desastres dentro do desastre.
Enquanto profissionais da psicologia, atuamos como psicólogas em situações de desastres. Maria Carolina de forma mais efetiva do que Eduarda. Contudo, podemos dizer que, profissionalmente e pessoalmente, nossas vidas foram perpassadas por situações de desastres. Ainda assim, não de forma tão expressiva como agora, não de modo tão visível e exposto como os dias que vivemos. Talvez, enquanto humanidade, nos demos conta, de forma muito intensa, da finitude da vida, da finitude dos processos de trabalho, das relações sociais, das relações familiares, do cotidiano conhecido, de nós mesmos.
Também, muito foi ponderado dentro dos grupos que trabalham com o sofrimento humano (psicólogos, terapeutas, médicos) sobre os processos de perdas, os lutos legitimados e não legitimados, nos atravessaram com intensidade. Não pudemos deixar de olhar para a importância dos rituais fúnebres para as famílias e amigos, para as perdas do cotidiano de ir a escola, de estar juntos a mesa para compartilhar, da vida, do alimento, do abraço que ficou suspenso, do trabalho que mudou de lógica e intensificou-se, perdendo-se em termos de temporalidade e misturando-se com a intimidade do lar.
Viorst (2005) nos diz que o modo como experienciamos nossas perdas, diz muito sobre o modo como vivemos. O que nos leva a reflexão, sobre a presencialidade nos processos afetivos que passam por nós.
Como vivemos e experienciamos nossas perdas? Há experienciamos nesta atualidade fluída? De um compromisso adoecedor por uma felicidade constante que não existe?! Perguntas que cabe a cada um a reflexão.
Cabe aqui, resgatar de forma menos teórica e mais visceral sobre como compreendemos os processos de morte e o enlutar-se. E o que é esse luto? Partimos das palavras da escritora Chimamanda, de que o luto é uma forma cruel de aprendizado. Para a autora com o luto,
“Você aprende como ele pode ser pouco suave, raivoso. Aprende como os pêsames podem soar rasos. Aprende quanto do luto tem a ver com palavras, com a derrota das palavras e com a busca de palavras” (NGOZI ADICHiE, 2021, p. 14).
Ou ainda:
“O Luto é uma estrada não pavimentada e imprevisivelmente sinuosa. Ele é inflexível e parece desordenado ou “incivilizado”, sobretudo para aqueles que aderem ao “culto da felicidade”. O luto é um antiestabilizador, um processo que viola regras, sendo resistente à contenção. O luto se recusa a seguir protocolo. É um território sagrado que pertence a cada indivíduo” (LUZ, 2021.p. 19-20).
De fato, essa imprevisibilidade atrelada à inflexibilidade nos rouba a falsa sensação de segurança. Não cabe aqui uma explicação teórica sobre o processo da morte, o morrer e o luto. Cabe a nós a reflexão sobre a finitude de processos vividos, e o novo/velho que pode se abrir, já que o mesmo não deixa de ser (uma cruel) aprendizagem, e um caminho que trilhamos só.
Sobre o luto: finitude(s) da vida e de vidas
Nos é estranha a tarefa de pensar, ler, dizer da morte. A morte, do modo como a concebemos conceitualmente, representa o fim da vida orgânica. Refere-se a um processo que não conhecemos por experiência própria, ainda. Da morte, temos apenas a concepção daquilo que se constrói a partir do imaginário coletivo e da observação que ronda a morte de um outro. Somos sujeitos marcados pelas experiências, são elas quem nos conduzem à consciência, das coisas e das coisas da vida. Por isso, talvez, dizer da morte seja tarefa árdua. Enquanto permanecermos vivos, da experiência da morte orgânica não saberemos.
Contudo, a morte não está atrelada apenas ao corpo físico…
Morte é também finitude, mas não é na morte que moram todas as finitudes da vida. Diferente da morte, a finitude é um fim passível de experimentação durante a vida. A finitude comporta a vida, dá contorno a ela e mesmo quando encerra algo, também inaugura. É, inclusive, por sabermos da finitude que nos confortamos com a morte de alguém, compreendendo que também cabe finitude no sentimento e na experiência da dor da perda.
Há muito começo que só é inaugurado pela finitude. Seja de um dia ruim, de um término, de um processo, ou até mesmo de um emprego. Enfrentamos finais mesmo quando não os nomeamos assim. Talvez, não passemos ilesos desta experimentação do fim, a finitude também há de doer, mas certamente, é um final que nos conduz a um novo início. Por isso mesmo a finitude é demarcada por um sentir que é agridoce, vivê-la é sempre encontrar com o amargo e com a doçura, tal como é com a vida.
Nós só sabemos o que é doce porque experimentamos o amargo. Ainda assim, parece não haver mais espaço para viver o que não faz da vida alegre, nos tempos atuais. Buscamos métodos, terapias, vídeos e cursos que de algum modo nos conduzam a um aceleramento do processo do sentir a finitude. A cultura ocidental parece ter vinculado a ideia de produção ao sentimento de fim, de modo que, passar por um processo de finitude nos tornaria improdutivos devido as emoções atreladas aos finais. Sofrer o fim seria então estar contraproducente àquilo que se espera da vida. Justamente por isso, precisamos atentar para a compreensão do que se espera da vida contemporânea.
A vida é perpassada de finitudes. Sejam essas as finitudes orgânicas, emocionais, de experiências. O fim é uma certeza que temos diante de todos os processos de vida. Quando buscamos apressar aquilo que é da ordem do fim, não estamos de modo algum ilesos das emoções que advém das finitudes, mesmo quando acreditamos nisso. Viver o fim é o que nos aproxima da própria vida, e de um viver que se conecta com o mais íntimo do que ainda está vivo em nós.
Referências:
VIORST, J. Perdas Necessárias. 4ªed. São Paulo. Editora Melhoramentos, 2005. Tradução: Aulyde Soares Rodrigues.
LUZ, R. O luto é outra palavra para falar de amor. 1º Ed. Editora Ágora. 2021
NGOZI ADICHiE, C.. Notas sobre o luto. Tradução Fernanda Abreu. 1º ed. São Paulo, Companhia das Letras, 2021.