Texto escrito em parceria com Raica Moterle – CRP 07/36515. Psicóloga e Pós-Graduanda em Psicanálise com Crianças e Adolescentes
Existe muita coisa que não cabe mais nos tempos em que vivemos, mas que ainda insistimos em cultuar e, de algum modo, preservar, principalmente no que tange o desenvolvimento infantil. Quando uma criança chega à família, junto de sua “chegança”, parece reacender nos familiares que a recebem desejos que são particulares desses. Adjacente a isso, esses mesmos familiares tornam-se responsáveis por traduzir e apresentar o mundo ao bebê. Assim, constrói-se um entorno, que é composto por concepções acerca da vida, crenças e ideologias, que é repassado ao novo membro familiar.
Na infância, esse processo de tradução do mundo é feito de forma mais sutil, mas não menos prejudicial. A criança que chega é recebida com um universo de coisas cor-de-rosa ou de cor azul. Os brinquedos que ganha, costumam ser definidos por seu sexo biológico. De modo que, sua chegada, serve também como um propósito de atualização de crenças e costumes familiares. Funciona tal como um rito, e é do desejo da família que a criança integre esse processo, para que então possa integrar à família.
Integrar é um verbo importante para compreender a complexidade das relações familiares. Integrar é sobre fazer parte de algo, incluir-se em um grupo ou espaço, compor com outros. A família, como sabemos, é o primeiro grupo no qual somos integrados e é neste meio que, pouco a pouco, vamos constituindo nossa identidade. É também a partir do núcleo familiar que aprendemos, primeiramente, sobre o que é considerado característica de um homem e de uma mulher. Não porque, de fato, existam características determinantes, mas porque a sociedade as constrói e a família então repete.
A importância de refletir sobre esses processos, que se repetem nas famílias quando um bebê chega, relaciona-se com o entendimento de que os primeiros anos do desenvolvimento infantil merecem mais atenção. Durante os primeiros anos, tem-se o costume de infantilizar a criança. Isso parece estar correto, certo?! Mas não é bem assim que funciona. Infância e infantilização não são termos complementares, ou ao menos, não deveriam ser.
Tal como ocorre no processo de alfabetização, no qual a criança é inserida na linguagem, é preciso compreender que seu processo de integração à família perpassa pela mesma via. Tomar consciência da criança em sua integralidade, trata-se também de validá-la enquanto um sujeito que está aprendendo sobre o mundo, a partir do que lhe é ensinado. Dado que é a partir do imaginário e das concepções sociais da família que a criança descobre o mundo e então passa a significá-lo, é de suma importância que a família entenda sua influência nessa etapa do desenvolvimento. Nessa fase se introjeta aquilo que vê, que ouve e percebe, traduzindo isso em uma leitura do mundo.
Desenvolvimento infantil: a criança enquanto indivíduo
Há algumas coisas nas quais precisamos nos colocar a pensar:
– O que falha na família na hora de receber novos integrantes?
– De que modo reafirmamos funções sociais no desenvolvimento infantil e como evitar que aconteça?
– Quais mitos, comportamentos e concepções têm sido repassados, de geração para geração?
Para que a criança possa se desenvolver de forma saudável e íntegra, não importa a ela de que modo se configura a família. Se são dois pais ou duas mães, se são pais biológicos ou adotivos, ou qualquer outro rearranjo familiar que se componha. O que importa e produz diferença nessa fase é que seja respeitada enquanto sujeito.
Tendo isso em vista, vale também questionar: qual e como é o mundo que apresentamos para as crianças? Se o que é ensinado é traduzido como primeira concepção da sociedade, a família está ativamente imbricada no modo como a criança constitui-se subjetivamente. Quando se sugere que a menina brinca de casinha e o menino pode aventurar-se, está se ensinando sobre o papel social do homem e da mulher. É nesse espaço-cronológico que se produz mitos e irrealidades, que tornam-se reais pela ênfase e repetição de discursos e ações. É também aí que se inventam narrativas como a do instinto materno, por exemplo, quando se ensina uma menina a cuidar de uma boneca, amamentá-la, trocar sua fralda.
O sujeito é sempre constituído a partir do encontro com outro humano. Considerando isso, pode-se dizer que a linguagem é o que emancipa esse novo sujeito, a partir do intermédio entre linguagem, criança e o outro. Esta tem papel fundamental nesse encontro, do sujeito com o mundo, e é quem ampara, estrutura, e condiciona a subjetividade humana. Reafirmamos assim a noção de que a inscrição da criança na sociedade, experimentada primeiramente por meio da integração à família, é também carregada pelo que lhe é atribuído culturalmente, de forma muito particular e diversa nos inúmeros modos de existir e se relacionar no mundo. É nesse lugar, na relação com um Outro que nos atravessa a existência, que atribuímos sentidos, significados e que nomeamos as coisas do mundo.
Conclui-se então que o desenvolvimento infantil depende de um contexto familiar que tenha consciência de seu papel ativo na tradução e na apresentação da sociedade e de tudo que compõe a vida humana. É necessário, sobretudo, que seja concebida, como já citado anteriormente, enquanto um indivíduo, assim como pontua Winnicott:
“Desde o início é possível a um observador perceber que a criança já é um ser humano, uma unidade. Com um ano, a maioria das crianças já adquiriu de fato o status de indivíduo. Em outras palavras, a personalidade tornou-se integrada. É claro que isto nem sempre é verdade, mas pode-se dizer que, em certos momentos, ao longo de certos períodos e em certas relações, a criança de um ano é uma pessoa inteira. Mas a integração não é algo automático, é algo que deve desenvolver-se pouco a pouco em cada criança individual. Não é mera questão de neurofisiologia, pois, para que seu processo se desenrole, há a necessidade da presença de certas condições ambientais […] (2011, p. 6)”
Por fim, cabe dizer que acreditamos que a criança não pode ser tomada pelo significado que já lhe foi atribuído nos tempos antigos, como o “infan”, termo que se refere àqueles que não tem voz ou lugar de fala. O desenvolvimento infantil está inteiramente relacionado as condições sociais e humanizadoras a que a criança é exposta, não basta somente um, tampouco outro. Há necessidades básicas que precisam ser supridas para que eticamente se possa viver e se desenvolver.
Referência:
D.W. Winnicott. A família e o desenvolvimento individual. Martins Fontes, 2011.